quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Formulário


Encontrei um maldito formulário preenchido com a tua letra. Mais um fantasma dentre tantos que não ouso em me desfazer. Cartas e bilhetes, sei onde guardei. Jamais tocarei nestes novamente. Mas..um formulário! Sem vestígios claros. Meu RG, meu endereço e tua marca no papel. Que se eu não lembrasse cuidadosamente dos detalhes, talvez fosse segredo imortal. Queria não ter lembrado. Queria não ter esquecido exatamente o porquê de mexer nesses papéis antigos dos quais sobreviveram a tantas limpezas. Queria não ter parado alguns minutos e lembrado exatamente do momento em que preencheste o maldito papel. Sentada no chão gelado refrescando memórias pra transformá-las em poesia inútil. E pensando na inocência que vem junto com o amor. E como é fácil dissipá-la para sempre. A ponto de detalhes tão pequenos se apagarem da memória. Até talvez não sobrar nada. Mas sempre sobra.

12082014

quarta-feira, 29 de junho de 2016

(com amor, para o amor em si)

Muitos eram os corredores, algumas portas não abriam. Eu mesma não tinha chave.

Outras, nem tinham fechadura. Eram lugares inexplorados
como um labirinto

não dava mais para sair
e era impossível de ser desvendado.

Algo em mim sempre relutou
pois quando chovia, transbordava.

E dava medo de se afogar.

Mas quando havia sol
era a parte palpável da felicidade
aquela que sempre ouvia falar
mas não tinha gosto nem cheiro.

Isso me fazia temer as tempestades.

Construí um barco
sempre vale a pena esperar estiar.


(com amor, para o amor em si)

segunda-feira, 28 de março de 2016

Somos finos como papel. Existimos por acaso entre as porcentagens, temporariamente. E esta é a melhor e a pior parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso. Você pode sentar no topo de uma montanha e meditar por décadas e nada vai mudar. Você pode mudar a si mesmo para ser aceitável, mas talvez isso também esteja errado. Talvez pensemos demais. Sinta mais, pense menos. 

Não há nada que se possa fazer sobre isso.

As vezes, silenciar é o melhor a ser feito.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

tempo

Me comove a sensação de que o tempo voa.
Passei o dia inteiro tentando reescrever coisas que há muito já haviam sido ditas,
refutadas,
confirmadas,
discutidas.
Senti vontade de continuar a ler aquele livro que já não toco há dias
ouvir aquele cd de bob dylan
sair de casa e tomar banho de chuva
passei o dia inteiro tentando reeditar coisas das quais não acredito

minha cabeça ainda dói as vezes
é quase insuportável
sinto vontade de deixar de existir as vezes
mas depois passa.

ainda tenho que ler aquelas páginas
que eu já havia lido três anos atrás
mas quando a minha vida virou de cabeça pra baixo
fui obrigada a abandonar

O tempo voa e isso me comove
eu sinto ele passando por mim
fortalecendo a sensação de inutilidade
esmaecendo as vontades
aprimorando os desejos
multiplicando o cansaço.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
seja

(Paulo Leminski)
Um Poema Quase Feito - Charles Bukowski
Eu te vejo bebendo em uma fonte com minúsculas
mãos azuis, não, suas mãos não são minúsculas,
elas são pequenas, e a fonte fica na França
onde você me escreveu aquela última carta e
eu respondi e nunca mais ouvi falar de você.
Você costumava escrever poemas insanos sobre
ANJOS E DEUS, todos em maiúscula, e você
conhecia artistas famosos e muitos deles
eram seus amantes, e eu escrevi de volta, tudo certo,
vá em frente, entre em suas vidas, não tenho ciúme
porque nunca nos encontramos. Nós chegamos perto uma vez em
Nova Orleans, uma meia quadra, mas nunca nos encontramos, nunca
nos tocamos. Então você se foi com famosos e escreveu
sobre os famosos, e, claro, o que você descobriu
é que os famosos estão preocupados com
sua fama -- não com a bela garota jovem na cama
com eles, que dá pra eles aquilo, e depois acorda
de manhã para escrever poemas em letra maiúscula sobre
ANJOS E DEUS. Sabemos que Deus está morto, eles nos disseram,
mas ao ouvir você eu não estava certo. Talvez fossem as
maiúsculas. Você foi uma das melhores poetisas e eu disse aos editores,
"ela, edite-a, ela é louca mas é mágica.
Não há mentira em seu fogo." Eu te amei
como um homem ama uma mulher que nunca toca, apenas
escreve para ela, mantém pequenas fotos dela. Eu teria
te amado mais se eu tivesse sentado em um pequeno quarto enrolando
um cigarro e ouvido você mijar no banheiro,
mas não aconteceu. Suas cartas ficaram mais tristes.
Seus amores te traíram. Criança, eu respondi, todos
os amores traem. Não ajudou. Você disse
que tinha um banco para chorar e ficava perto de uma ponte e
a ponte era sobre um rio e você sentou no banco
toda noite e lamentou pelos amores que te
machucaram e esqueceram. Eu te respondi mas nunca recebi
resposta. Um amigo me escreveu sobre seu suicídio
3 ou 4 meses depois de acontecido. Se eu tivesse te encontrado,
eu provavelmente teria sido injusto com você ou você
comigo. Foi melhor assim.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa)